quinta-feira, 28 de abril de 2011

o Brasil consolida a aposta na cooperaçao Sul-Su


A política da solidariedade

De receptor a doador, o Brasil consolida a aposta na cooperaçao Sul-Sul. Por Rodrigo Martins e Olga Vlahou (FOTOS)
De São Tomé e Príncipe*
O calor na sala de aula mal ventilada castiga, mas parece não tirar o ânimo da costureira Cristina Quintas da Graça, de 77 anos, aplicada aluna do curso de alfabetização para adultos de uma escola na capital de São Tomé e Príncipe, arquipélago africano com pouco mais de 160 mil habitantes no Golfo da Guiné. O suor transpassa pelo véu delicadamente ajeitado na cabeça e a costureira expõe com orgulho o caderno repleto de anotações, numa caligrafia impecável, apesar das mãos trêmulas da estudante tardia, que não teve chance de frequentar os bancos escolares quando jovem.
Cristina é um dos 13 mil são-tomenses que aprenderam a ler e escrever com professores capacitados pelo Programa Alfabetização Solidária desde 2001. Trata-se do mais antigo projeto de cooperação- -técnica do governo brasileiro no país, que só conquistou a sua independência em 1975. Atualmente, o Brasil possui 15 projetos em andamento na nação africana, um investimento estimado em 10,4 milhões de dólares, dos quais 3,2 milhões já foram executados. Parece pouco diante da gravidade dos problemas locais, mas é o suficiente para colocar o País entre os três maiores colaboradores da antiga colônia portuguesa produtora de café e cacau, que hoje sobrevive fundamentalmente da cooperação internacional. Perto de 93% do investimento público provém de doações estrangeiras, afirma o primeiro-ministro, Patrice Trovoada, que assumiu o governo a menos de um ano.
A pauta de investimentos brasileiros em São Tomé é diversificada, inclui programas de alimentação escolar, agricultura familiar, ações de combate à malária e à tuberculose, apoio em planos de habitação e urbanismo, gestão das águas, projetos culturais e até mesmo a capacitação de policiais por agentes da Polícia Federal. Também há medidas que visam ao fortalecimento institucional do arquipélago, como instrumentos de governança eletrônica e suporte para uma política de salário mínimo, hoje inexistente. “Para ter uma ideia, o salário médio pago aos funcionários da saúde gira em torno de 45 dólares. Poucos cidadãos ganham mais do que isso”, comenta a ministra da Saúde, Ângela Pinheiro. A população só não passa fome, a exemplo do que ocorre em outras nações africanas, porque não há conflitos e a agricultura e a pesca são fartas.
Graças à pequena dimensão das ilhas e da população, o que permite avaliar os resultados dos projetos mais rapidamente, São Tomé e Príncipe é visto como uma espécie de laboratório da diplomacia Sul-Sul brasileira, que ganhou força na política externa, sobretudo, a partir do segundo mandato do presidente Lula. Ao todo, são mais de 80 países que recebem ajuda técnica e financeira do Brasil. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado em dezembro de 2010, revela que o País gastou quase 2,9 bilhões de reais entre 2005 e 2009 em ações de ajuda humanitária, bolsas de estudo para estrangeiros, cooperação técnica, científica e tecnológica, além das contribuições para organizações internacionais.
“Se somarmos a esse valor outros 5 bilhões de reais que oferecemos em empréstimos a fundo perdido ou em perdão de dívidas, segundo dados do Ministério da Fazenda, chegamos a uma cifra de quase 8 bilhões de reais no perío-do, o que fez o Brasil, pela primeira vez em sua história, doar mais recursos do que receber”, afirma o ministro Marco Farani, presidente da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), braço do Itamaraty responsável por mediar os projetos internacionais de colaboração.
Em geral, são programas de transferência de técnicas agrícolas que permitam ao Benim, por exemplo, cultivar algodão de alta produtividade ou a Moçambique produzir medicamentos contra a Aids. Ou ainda qualificar técnicos para o mercado de trabalho, como é feito pelo Centro de Formação e Capacitação Profissional de Hernandárias, no Paraguai. Realizado em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), a instituição ofereceu mais de 660 cursos e formou mais de 10 mil profissionais nas áreas de eletroeletrônica, metal-mecânica, construção civil e informática, entre outras carreiras, uma experiência replicada em diversas nações da América Latina e da África.
“Além de capacitar três gestores e 22 docentes, pretendemos acompanhar a formação dos mil primeiros alunos”, comenta Marconi Firmino da Silva, coordenador técnico-pedagógico do Senai, responsável pelo Centro de Formação Profissional Brasil – São Tomé e Príncipe, que contará com laboratórios volantes, para cursos a serem ministrados nos distritos mais afastados da capital. “Vamos preparar profissionais para os desafios que a nação africana terá de enfrentar. Hoje, por exemplo, há uma carência de funcionários da construção civil para obras de grande porte, como pontes e viadutos. E os profissionais que vamos formar poderão até -erguer plataformas de petróleo, um dos sonhos do governo são-tomense.”
De acordo com a cartilha oficial, a política de cooperação brasileira pauta-se pela solidariedade, com parcerias igualitárias e horizontais, sem condicionantes políticas ou comerciais. Em outras palavras, não existe a pretensão de usar os projetos como moeda de troca para fechar negócios ou para satisfazer as ambições imediatas de maior representatividade nos fóruns internacionais. “Trata-se de uma questão moral que se impõe ao Brasil na medida em que o País experimenta um crescimento econômico sustentado e busca maior projeção no cenário mundial”, explica Farani. “É evidente que, no longo prazo, poderemos colher frutos. Ao se posicionar como uma nação solidária, naturalmente o Brasil se colocará como um interlocutor respeitado entre as nações do Hemisfério Sul.”
O premier são-tomense confirma a tese. “Há muitos anos se fala na Cooperação Sul-Sul, mas a estratégia dos países emergentes não é a mesma. Há quem exerça muita pressão sobre os nossos recursos naturais. E há nações como o Brasil que, além de buscar novos mercados, possuem preocupação ética”, avalia. “Sabemos que há interesses por trás da cooperação. A China tem assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, o que não é o caso do Brasil. Mas vocês têm um olhar mais solidário em relação a nós. Por isso aposto que, nos próximos anos, o Brasil será a voz do Terceiro Mundo, o player com mais apoio das nações pobres.”
O exemplo de São Tomé é representativo da suposta ausência de um viés imperialista na cooperação brasileira. Os negócios entre as duas nações são ínfimos e, por vários anos, a balança comercial foi nula. A recente descoberta de um poço de petróleo no mar são-tomense não despertou o interesse da Petrobras, que abdicou da disputa com os nigerianos para se concentrar na exploração do pré-sal em águas brasileiras. O diminuto mercado consumidor de São Tomé e Príncipe também não se mostra atrativo, sobretudo diante de uma operação logística tão complicada num país que possui apenas quatro voos semanais para Portugal, Angola, Gabão e Guiné Equatorial.
Mesmo assim, há disposição do governo local em atrair empresas brasileiras como a Embraer. “Estamos a poucas horas de voo de dezenas de nações africanas. Acredito que temos vocação para ser uma plataforma prestadora de serviços, de estocagem e distribuição de produtos a partir do terminal portuário e do aeroporto. Se conseguirmos modernizá-los, quem sabe a Embraer não se interesse em instalar aqui uma base operacional”, especula o premier Trovoada.
A sugestão é bem recebida pelo embaixador brasileiro Arthur Meyer, que aproveita a brecha na conversa para comentar sobre um grupo de empresários interessados em usar São Tomé como escala para voos charter a partir de São Paulo com destino ao Oriente Médio. A CartaCapital, o diplomata fez questão de pontuar, porém, que a cooperação técnica não está vinculada aos negócios. “Não existem condicionantes. Os projetos, por sinal, são estruturados a partir das demandas do governo local.”
Boa parte dos programas aplicados no arquipélago africano foi testada no Brasil e ganhou reconhecimento internacional. O Alfabetização Solidária, por exemplo, recebeu em 1999 o Prêmio de Iniciativas Bem-Sucedidas da Unesco, braço da Organização das Nações Unidas para a Educação. O programa de alimentação escolar, por sua vez, apresentou excelentes resultados nas escolas públicas brasileiras antes de ser aplicado na África.
Desde a independência de São Tomé e Príncipe, a merenda escolar era garantida com doações do Programa Mundial de Alimentos (PAM) da ONU. Por causa da má gestão dos recursos, a assistência foi suspensa entre 1995 e 2000, o que fez a taxa de evasão escolar crescer vertiginosamente. “Agora, o PAM pretende se retirar do país novamente, desta vez de forma gradual. E o suporte do governo brasileiro tem sido indispensável para essa transição”, afirma Alexandrina Vera Cruz, -coordenadora do Programa Nacional de Alimentação e Saúde Escolar do governo de São Tomé. O diferencial da ação é a estratégia de capacitar as merendeiras a fazer refeições nutritivas com os alimentos produzidos na ilha. “Ao privilegiar a aquisição de produtos dos pequenos agricultores, também estimulamos o desenvolvimento da economia local”, comenta a nutricionista brasileira Raquel Teixeira, responsável pelo projeto de cooperação na área.
Inicialmente aplicado em quatro escolas, o programa de alimentação escolar está em fase de expansão para oito unidades de ensino e pode beneficiar mais de 4 mil alunos. A mudança é perceptível até na configuração das cantinas. Nas escolas sem o projeto, a refeição continua feita à base do improviso sobre o chão, com barras de ferro suspensas por tijolos para fazer as vezes do fogão a lenha. Em poucos segundos, os olhos de quem se aproxima começam a lacrimejar, irritados com a branca e espessa nuvem de fumaça. Nos locais beneficiados, há fogões a lenha ecológicos e bancadas com torneira para a higienização das mãos e da comida. “As condições de trabalho melhoraram muito. Antes, era comum a gente passar mal com o calor e a fumaça”, comenta a cantineira Fernanda Soares Boa Morte, de 51 anos.
Com o apoio de técnicos brasileiros da Caixa Econômica Federal, o governo local pretende ainda criar um fundo para construir moradias populares. O projeto está articulado à política de reordenamento urbano e de gestão das águas. “Assim como no Brasil, muitas comunidades pobres se instalam em encostas e nas margens de rios, o que as coloca em risco e contamina as águas”, comenta, do Instituto de Gestão das Águas da Bahia (Ingá), Heráclio Alves de Araújo, meteorologista engajado na reestruturação da política de recursos hídricos em São Tomé e na elaboração de um plano de prevenção às mudanças climáticas. “O desmatamento já está causando a savanização de florestas tropicais e algumas cidades sofrem com inundações de rios e o avanço do mar.”
Na avaliação do ministro de Obras Públicas e Recursos Naturais, Carlos Vila Nova, as semelhanças entre Brasil e São Tomé contribuem para o êxito dessas iniciativas. “Os países desenvolvidos superaram esse tipo de problema há muito tempo e as soluções que eles propõem muitas vezes não podem ser adaptadas à nossa realidade”, afirma. “O Brasil, mais do que a língua comum e as raízes culturais próximas, possui problemas muito semelhantes aos nossos e tem superado alguns deles. Portanto, pode oferecer mais do que os nossos parceiros do Norte.”
As semelhanças também são apontadas pela ministra da Saúde como o principal trunfo da cooperação brasileira, quando comparada à assistência de nações desenvolvidas. “Antigamente, havia muito desperdício de recursos, porque os europeus chegavam com uma solução pronta e depois a gente não tinha condições de dar continuidade aos programas. Com o Brasil, é diferente. Há transferência de saberes e diálogo com as autoridades locais. Quando os projetos acabarem, teremos condições de nos apropriarmos deles”, diz Pinheiro.
Entre as ações voltadas para a saúde, os brasileiros têm contribuído para a instalação de um sistema informatizado de detecção de casos e focos de transmissão da malária, além de aportar recursos para a instalação de um laboratório específico para o diagnóstico da tuberculose (atualmente, apenas um hospital realiza os exames mais complexos para detectar a doença). Mas o governo local aposta em muitas outras parcerias. “O Brasil é referência no tratamento da Aids e na fabricação de remédios genéricos, um dos nossos maiores gargalos. Mesmo o setor privado encontra dificuldades para adquirir medicamentos.”
Anna Cristina Bittencourt Pérez, analista da ABC e coordenadora da cooperação brasileira em São Tomé e Príncipe, reconhece que as demandas são maiores que a capacidade de o Brasil ajudar. “Acabamos de assinar o 15º projeto, mas é difícil expandir mais o leque sem o aporte de recursos.” O presidente da ABC admite que o investimento da agência ainda é pequeno. “O nosso orçamento cresceu de 15,6 milhões de reais, em 2006, para 52,5 milhões de reais em 2010. Em 2011, havia uma previsão de 92 milhões de reais em recursos, mas, por causa do corte de gastos que atingiu todo o governo, o orçamento manteve-se no mesmo valor do ano passado”, afirma Farani. “É pouco diante do nosso potencial. As nações desenvolvidas investem em -cooperação mais de 1 bilhão de dólares por ano. Não digo que devamos chegar a esse patamar, ainda somos um país em desenvolvimento e com muitos problemas internos. Mas, de fato, precisamos ter maior aporte para esse tipo de política.”
A opinião é compartilhada por Jorge Chediek, coordenador do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) no Brasil. “O povo brasileiro precisa estar ciente das enormes contribuições que o País tem oferecido às nações pobres e apoiar um investimento maior nessa área. Não podemos esquecer que o Brasil contou com a cooperação estrangeira para se desenvolver e que tem muito a oferecer ao mundo, seja pela sua expertise em agricultura tropical, seja por mostrar que é possível erradicar a fome e reduzir as desigualdades.” Além do aumento nos investimentos, Chediek defende a aprovação de um projeto de lei que confira à ABC maior independência administrativa, com corpo próprio de profissionais e mais autonomia para financiar projetos. Hoje, a burocracia é tão grande que por vezes o próprio Pnud atua como intermediário no repasse de recursos para driblar os entraves da legislação excessivamente restritiva.
Mesmo limitada, a cooperação brasileira é exitosa, avalia Chediek. Sobretudo na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, onde os brasileiros têm vantagens comparativas em razão de falar o mesmo idioma e ter uma raiz cultural semelhante. Esse diferencial é o que facilita, por exemplo, a formação de artesãos como Tomé Coelho, de 35 anos, que aprimorou suas técnicas de marcenaria e conseguiu vender linhas exclusivas de produtos a empresas locais e do exterior. Ou o que faz uma roda de capoeira liderada por professores brasileiros atrair a atenção na praça principal de São Tomé, em frente do palácio do premier, e logo se converter num espetáculo de danças africanas. “Parece mentira, mas tinha uma molecada treinando capoeira aqui sem nenhuma instrução. Começaram observando vídeos na internet e seguiram adiante”, comenta Ralil Salomão, do Instituto Raízes do Brasil, convidado para capacitar capoeiristas do outro lado do Atlântico. “É emocionante ver a facilidade de aprendizado e como eles valorizam nossa cultura. No Brasil, é difícil ver uma roda atrair tanto público.”
*Os repórteres viajaram a convite da Agência Brasileira de Cooperação.

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